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Foto do escritorMaria Angelina Marzochi

Aos nascidos nos anos 60: Onde foi que nos separamos?


Você, que como eu, nasceu nos anos 60, brincou de queimada na rua, de passa-anel, de balança caixão, de amarelinha e pulou corda. Comeu manga de vez e manga verde com sal. Talvez você tenha tido uma boneca dorminhoca ou um carrinho de rolimã feito com uma porta de madeira.

Provavelmente pegou catapora e caxumba, uma vez que ainda não havia vacinas para essas doenças, mas não pegou poliomielite, tétano e varíola porque seus pais o vacinaram.

Talvez, nas Festas Juninas, você tenha mandado correio elegante para alguém que estava de paquera, subido no pau de sebo na quermesse da igreja para ganhar um prêmio, queimado o Judas no Sábado de Aleluia.

Usado bota ortopédica, minissaia, vestido trapézio ou tubinho com estampa psicodélica, ou blusa de gola olímpica, corte de cabelo pigmaleão ou o cabelo pega-rapaz e dançado de rosto colado com um broto legal.

Você, que como eu, viveu o Movimento Hippie, que defendia o amor e o sexo livre. Usava calças jeans desbotadas com tijolo, vestido tie-dye, camisa Volta ao Mundo ou cacharrel. Usava alpargatas e se sentiu rico quando comprou um tênis Rainha.

Passou escovão no chão vermelhão da sua mãe e respirou aliviado quando chegou a enceradeira e a cera Cardeal. Testemunhou a chegada da TV Semp valvulada, da geladeira Consul, do liquidificador Walita, da máquina de lavar roupa Pioneira e do fogão Dako.

Comprava discos de vinil de uma faixa só ou Long Play para tocar na vitrola, fazia serenata na janela e ouvia novelas de rádio.

Tinha um anel brucutu e um chaveiro calhambeque.

Falava gírias com os amigos, era um broto legal que não entendia bulhufas da vida, às vezes cafona, tinha um papo furado, mas sonhava ser tremendão.

Fazia festinha americana no quintal e servia Cuba Libre, Hi-Fi, Batida de Coco, Vermute, sangria, cuscuz de sardinha, batatinha curtida no vinagre e rocambole ao som de Roberto Carlos e Jerry Adriani.

Cheirava desodorante no carnaval pensando que era lança-perfume.

Assistiu à Jovem Guarda e à Tropicália e cantou: “Quero Que Vá Tudo Para o Inferno”, “Trem das Onze”, “A Banda”, “Banho de Lua”, “Arrastão”, “Disparada”, “Ponteio”, “Sabiá” e “Sinal Fechado”.

Viu acontecer Woodstock, um movimento de contracultura, no qual rolou muito LSD, maconha, psilocibina, anfetamina, heroína e cocaína.

Pegou na mão, roubou um beijo, pediu em namoro e usou aliança de compromisso.

Fez footing na praça ao redor do chafariz, foi à missa de domingo com a camisa engomada ou com vestido de tecido anarruga.

Conheceu alguém que brincou de roleta russa e perdeu a vida.

Andou em carro envenenado com naftalina e gasolina azul. Andou de Fusca, Opala, Galaxie, DKW-Vemag, Simca, Aero-Willys e gostaria de ter andado no Itamaraty e no Puma GT.

Assistiu a “Butch Cassidy”, “Quem Tem Medo de Virginia Woolf” e “Bonequinha de Luxo”. Era fã de  Steve McQueen e Jack Nicholson.

Você, que como eu, testemunhou a revolução da pílula anticoncepcional, que deu às mulheres maior controle sobre suas vidas reprodutivas, permitindo que elas decidissem quando e se queriam ter filhos.

Ouviu Martin Luther King Jr. proclamar seu sonho de igualdade no discurso “I Have a Dream”, que se tornou um símbolo poderoso da luta contra a segregação racial e a discriminação.

Assistiu pela TV em preto e branco à chegada da Apollo 11 à Lua e vibrou quando Armstrong deu o primeiro passo lunar. Era a primeira vez que um humano pisava na Lua. A Lua dos enamorados, testemunha de tantas promessas e juras de amor, agora se tornava um território a ser explorado.

Viu a construção do Muro de Berlim, que separou a cidade em Berlim Oriental e Ocidental, uma socialista e outra capitalista.

Viveu a polarização mundial e a corrida armamentista da Guerra Fria, que resultou na Guerra do Vietnã. Quantas vezes você cantou a música dos Incríveis: “Era um Garoto, Que Como Eu, Amava os Beatles e os Rolling Stones”? Além de Beatles e Rolling Stones, você também amava Bob Dylan.

Assistiu à inauguração de Brasília, que foi concebida como um símbolo de união, promovendo um sentimento de identidade e coesão nacional.

Em seguida, veio o Golpe Militar de 64 e o famigerado AI-5, que torturou e matou o jornalista Vladimir Herzog, o operário Manuel Filho, Carlos Marighella, Stuart Angel Jones, Zuzu Angel e outros 400 brasileiros, além de perseguir, torturar e exilar políticos, intelectuais, artistas e músicos. A lista é infinita; inúmeras famílias ainda vivem um luto que não pôde ser encerrado. Um luto sem corpo.

E, quando chegaram os anos 70, você foi brega o suficiente para usar calça boca de sino ou pantalona, saia longa, bata, saia plissada, sapatos com saltos plataforma e calça Saint Tropez que mostrava o umbigo.

Você, que como eu, ouviu pela TV sobre o Golpe Militar no Chile, que prendeu e torturou 38.000 e matou 3.000 pessoas.

Viu chegar ao fim a Guerra do Vietnã com o Acordo de Paz de Paris e a retirada das tropas americanas.

E as boas notícias continuavam chegando, agora vindas de Portugal com a Revolução dos Cravos, uma revolução pacífica na qual os soldados colocaram cravos no cano de suas armas.

Vibrou com a Copa do Mundo de 70 quando tínhamos em um mesmo time: Pelé, Jairzinho, Tostão e Rivelino.

Chocou-se com o Massacre de Munique que ocorreu nos Jogos Olímpicos de 1972, quando o grupo terrorista Setembro Negro invadiu a Vila Olímpica e fez 11 jogadores judeus de refém, que em uma operação de resgate malsucedido foram mortos.

Teve que decorar o nome dos presidentes do regime militar: Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo, este último, que preferia os cavalos aos humanos. Viu iniciar a tresloucada construção da Transamazônica, parte do Milagre Econômico que encenavam no Brasil. Era obrigado a desfilar no dia 31 de março com a escola, para comemorar o golpeamento da democracia. Viu a censura dos militares e a resistência do povo e dos artistas

Você, que como eu, assistiu, aos domingos, às corridas de Emerson Fittipaldi na televisão em cores que acabara de chegar ao Brasil.

Teve um Rádio Toca Fitas TKR que você tirava do fusca para não ser roubado. Cantou “Azul da Cor do Mar”, “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, “Jesus Cristo”, “Metamorfose Ambulante”, “Meu Mundo e Nada Mais”.

Assistiu Irmãos Coragem, Selva de Pedra, O Bem-Amado, Escrava Isaura, O Astro e Dancin’ Days. Sentiu raiva de Herculano Quintanilha e amou Odorico Paraguaçu.

Incorporou no seu vocabulário cotidiano as gírias dos anos 70. A vida estava uma barra pesada para um bicho-grilo que na verdade sempre foi careta e ficava grilado por não ser chuchu beleza. Aprendeu na Discoteca do Chacrinha que quem não se comunica se estrumbica.

Assistiu o Programa Silvio Santos, o Clube do Bolinha, o Flávio Cavalcanti e o Almoço com as Estrelas.

 Você, que como eu, teve acesso a autores como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado. Assistiu no cinema a filmes como Dona Flor e Seus Dois Maridos, O Passageiro da Agonia e Macunaíma.

Vibrou com a Queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Se preocupou com a Guerra das Malvinas que estava acontecendo no nosso quintal entre a Argentina e o Reino Unido. E teve a Guerra Irã-Iraque que fez parte do noticiário durante 8 anos, durou quase toda a década de 80.

Viu o lançamento do primeiro Mac- Macintosh 128K, que revolucionou a forma como as pessoas interagiam com computadores pessoais.

Passou a se preocupar com o buraco na camada de ozônio observado na Antártida e começou a usar filtro solar, abandonando o uso de bronzeadores caseiros feitos com óleo mineral, cenoura e beterraba.

Ficou apreensivo com o acidente nuclear em Chernobyl cuja irradiação atingiu países distantes, como até mesmo Estados Unidos e Canadá.

Teve medo do vírus da AIDS que matou 450.000 na década de 80.

Não compreendeu, quando, em Nova Iorque, um fã obcecado disparou cinco tiros contra John Lennon tirando a sua vida.

Deu adeus a Elis Regina, que morria aos 36 anos em 82.

Vibrou pelas Diretas Já e pela redemocratização do país. Ficou confuso com o Plano Cruzado, depois com o Plano Bresser e, por fim, o Plano Verão, que também  em nada resultou.

Você, que como eu, cantou com Legião Urbana, Titãs e Paralamas do Sucesso. Assistiu Roque Santeiro, e Vale Tudo. Não perdia a Fórmula 1 aos domingos para ver Nelson Piquet e Ayrton Senna. Assistiu no cinema “De Volta para o Futuro, Os Caça-Fantasmas, E.T., O Iluminado e Top Gun”.

Ficou admirado e desconcertado com o nascimento do primeiro bebê de proveta no Brasil, Anna, que nasceu no Parará - um marco para a medicina, porque trouxe esperança para muitas mulheres que não conseguiam engravidar.

Nos anos 90, você já estava na casa dos 30 e começou a ficar antenado, tinha medo de ser azarão. Gostava de xavecar, deu tilt e ficou grilado, mas estava “numa nice”.  Era um pentelho que vivia pagando mico. Rachou o bico e viajou na maionese.

Com a queda da União Soviética e a reunificação da Alemanha achou que o mundo estava melhorando. Só que não. Teve a Guerra do Golfo, Genocídio de Ruanda e a Guerra da Bósnia.

A ciência estava avançando e a NASA lançou telescópio Hubble no espaço. Clonaram uma ovelha e nasceu Dolly. A internet estava se popularizando e a internet discada chegou na sua casa com Windows 95 e o nascimento do Google.

A Princesa Diana morreu tragicamente e você incorporou mais uma palavra em seu vocabulário: paparazzi.

Você assistiu o início do que hoje chamamos de “cancelamento” quando Bill Clinton e Monica Lewinskv foram protagonistas de um dos primeiros casos de cyberbullying. Monica foi a primeira pessoa a ter sua reputação completamente destruída mundialmente via internet.

Você, como eu, viu no mesmo ano o Brasil perder Ayrton Senna e vencer a Itália nos pênaltis e se tornar tetracampeão.

Talvez, você tenha sido um dos Cara Pintada que saiu às ruas para pedir o Impeachment de Fernando Collor. Depois veio o Plano Real do FHC, parecia que o Brasil estava entrando nos trilhos.

Chegou o ano 2000 e o mundo não chegou ao fim como previam algumas teorias apocalípticas. O Bug do Milênio também não aconteceu, mas acendeu um alerta de que estávamos cada vez mais dependentes de tecnologias.

Da máquina de escrever Olivetti, passamos pelo Telex, fax, internet discada, e-mail, Bina, secretária eletrônica, telemarketing, call center, computador 386, PC XT, disquete, CD, ICQ, MSN, internet banda larga, Orkut, WhatsApp, Facebook, Instagram, Twitter (X), celular flip, Android, pendrive, iPhone, iPad, iFood, Uber, Airbnb, Waze, Wi-Fi, Bluetooth, backup, download, YouTube e tantas outras tecnologias que mudaram a maneira como vivíamos.

Um operário e ex-sindicalista chegou à presidência da república através do voto popular e consolidou o Brasil como uma das maiores economias emergentes do mundo. A descoberta de grandes reservas de petróleo na camada pré-sal impulsionou a economia e a indústria petrolífera brasileira. Talvez você tenha votado nele, talvez não. Porém, é inegável os avanços percebidos na economia com o controle da inflação e a criação de benefícios sociais. Os pobres passaram a frequentar a universidade e a viajar de avião, e isso incomodou muita gente. Estávamos revendo conceitos que não eram politicamente corretos. Éramos um país progressista.

Depois veio Dilma, a primeira mulher na Presidência da República, uma ativista que foi presa e torturada pelo regime militar e que propôs, em seu governo, a instauração da Comissão Nacional da Verdade que tinha como objetivo apurar os crimes cometidos na ditadura e dar voz e visibilidade às vítimas e suas famílias.  Foi como declarar guerra aos militares que não queriam mexer no passado. Inflexível, não negociou com Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados (talvez o cargo mais importante que o do próprio Presidente da República). Em um jogo de força, ele colocou o pedido de impeachment em votação e saiu vitorioso, mas, posteriormente, foi preso pela Lava Jato.

Naqueles mesmos anos, o tetra não chegou ao penta e o rei ficou nu quando perdemos de 7x1 para a Alemanha.

Com a Lava Jato, surgiu um juiz que, a princípio, parecia o paladino da justiça, mas com o tempo se mostrou tão corrupto quanto os corruptos que ele queria combater. Na verdade, o tal juiz combateu a economia do país; com o argumento de combater a corrupção, fechou 4,4 milhões de postos de trabalho. Com tanto holofote, ficou tão inflado quanto os bonecos do ‘Super Moro. Com excesso de ego colocou tudo a perder e o Brasil perdeu a chance de combater a corrupção de forma justa e dentro da lei como acontece em outros países.

Talvez tenha sido neste momento que nós nos separamos. As notícias chegavam de todos os lados, era difícil separar o que era real e o que era manipulação política ou da própria mídia. Não sabíamos em quem acreditar. Tempos obscuros.

Você começou a achar normal e naturalizar falas como: “Direitos humanos, esterco da vagabundagem”; “A Polícia Militar devia ter matado 1.000 e não 111 presos” (sobre o massacre do Carandiru); “Pinochet devia ter matado mais gente”; “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil e fizer o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC"; “Não vou combater nem discriminar, mas se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”; “O erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Eu não te estupro porque você não merece”; “Prefiro que um filho meu morra em um acidente do que apareça aí com um bigodudo”.

A barra ficou pesada novamente e você foi de bicho grilo a velho careta. Começou a receber fake news pelos grupos do WhatsApp e passou a acreditar nelas e repassá-las sem verificar a veracidade. Você se transformou no tiozinho ou na tiazinha do WhatsApp.

Você viajou na maionese quando acreditou em mamadeira de piroca, em ideologia de gênero, acreditou que as escolas ensinavam as crianças a se masturbarem, acreditou que a Pepsi era adoçada com fetos de bebês abortados e passou a acreditar que a Terra era plana e que as escolas teriam banheiros unissex.

Quando chegou a pandemia de COVID-19, você acreditou que, se tomasse a vacina, iria virar jacaré ou ser controlado por um microchip chinês. Você boicotou a vacina que viria salvar milhões de vidas, logo você que, em 74 e 75, em pleno Regime Militar, correu para se vacinar com as vacinas vindas da URSS e dos EUA para conter um surto de meningite que assolava o país.

Mesmo sabendo que seu ídolo comprou 101 imóveis com dinheiro vivo e que ele tentou pilhar as joias que eram parte do acervo patrimonial do Estado, entre outras tantas barbaridades, você continua defendendo-o. Você foi à porta dos quartéis pedir intervenção militar. Deu tilt e você rezou para pneu e pediu ajuda para os extraterrestres, parecia coisa de maluco beleza.

Diante de tantas evidências, você continua defendendo o indefensável. Eu te compreendo. Mudar de opinião pode trazer-lhe prejuízos junto aos seus grupos; admitir que foi enganado pode lhe trazer algum desconforto psicológico. Talvez seja mais confortável a ilusão de que você compreende a situação política em profundidade. Admitir que o “ídolo” o enganou pode mexer com sua autoestima.

Mas, se por ventura, você chegou até aqui porque teve paciência de ler este longo texto e sentiu um desejo de deixar um comentário, tipo “E o Lula?” ou “Deus, Pátria e Família”, vou sugerir que você não passe essa vergonha, uma vez que tais comentários indicarão que você não entendeu nada do que escrevi.

Minha angústia é legítima. Se vivemos tudo o que vivemos, qual foi o momento que nos separamos?

Assim, entre fake news, teorias conspiratórias e crenças infundadas, nos perdemos em um labirinto de desinformação. O que nos separou? Talvez tenha sido o medo de admitir que fomos enganados, ou a necessidade de pertencer a grupos que reforçam nossas convicções. Mas, no fundo, a verdade é que nos afastamos da razão e da empatia. E agora, diante de tudo o que vivemos, resta a pergunta: como voltar a nos encontrar?

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