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Foto do escritorMaria Angelina Marzochi

SUPERE OS SEUS LIMITES, SERÁ MESMO?

Atualizado: 2 de ago. de 2020


O escritor escocês Samuel Smiles ( 1812-1904) publicou em 1859 o primeiro livro de autoajuda e seu jargão de abertura é: "O Céu ajuda aqueles que ajudam a si mesmos", ou, seja, "Deus ajuda aqueles que ajudam a si mesmos”, ou como diria a minha mãe usando de sua filosofia mineira : “Tira a bunda da cadeira e se mexe”, ou, “Arregaça as mangas e vai à luta”. Aqueles que tiveram uma mãe como a minha não precisaram ler livros de autoajuda para entender o óbvio.


Seguindo na linha dos jargões de autoajuda, outro muito comum é: “Supere seus limites”. Este sempre me causou um mal-estar, mas nunca havia parado para pensar qual a raiz do meu mal-estar. Hoje que já estou muito próxima de poder entrar em filas preferenciais, eu me pergunto, por que mesmo tenho que superar o meus limites? A quem estou querendo agradar?


A mim certamente que não, sou dessas pessoas que adoram viver dentro dos próprios limites, tenho muito claro para mim quais são os meus limites, até onde eu posso ir sem causar danos físicos e psicológicos a mim e aos outros. A minha fronteira de contato com o mundo é bem delineada, avanço se for preciso, mas também sei arrancar os sapatos e sair correndo quando os objetos são nocivos.


Se você tem um trauma que precisa ser superado, que impede a sua vida seguir o curso natural do desenvolvimento humano, eu te apoio, vá em frente, supere seus limites que o limitam de ter uma vida que vale a pena ser vivida.


A ideia de superação constante é uma ideia do positivismo que serve muito bem ao mundo do consumo, coloca o indivíduo em permanente movimento. Não é possível superar seus limites físicos deitado no sofá lendo um livro, mas você pode superar o número de livros que já conseguiu ler em um mês. Para que? Com quem você está competindo?


O tipo extrovertido que tem seu interesse voltado para o mundo externo, que não pode compreender a vida até que a tenha vivido, que gosta de mergulhar em experiências novas e não testadas anteriormente, compra com maior facilidade a ideia de superação constante, usa sua libido para superar os seus limites físicos e emocionais, e em alguns casos supera o limite do cartão de crédito e da conta corrente.


Normalmente é na adolescência que o jovem testa todos os limites, uma vez que se sente invulnerável, é o que os junguianos chamam da jornada do herói. “O herói começa achando que é invulnerável, que para ele só serve o ‘sonho impossível’, que ele pode lutar contra o ‘inimigo invencível’ e vencer. Mas se o sonho é realmente impossível, e o inimigo realmente invencível, o herói vai ter problemas (Moore e Gillette)[i].


Ícaro com um par de asas feitas de penas coladas com cera, desafiou o conselho do pai, superou os seus limites e voou perto do sol, que com o seu calor derreteu a cera e as asas se desmancharam e ele caiu no mar. Os gregos antigos diziam que a hybris vem acompanhada da nêmesis, ou seja, os deuses sempre derrubam os mortais que pensam que são deuses e se tornam arrogantes, exigentes e inflados.


Quando o arquétipo do herói continua dominante na vida adulta irá impedir que o indivíduo atinja a maioridade emocional. A história está repleta de heróis, que já não eram mais adolescentes e tiveram suas vidas interrompidas ao atravessar a linha do limite possível.


Janis Joplin encontrou o seu limite na heroína (heroína opiáceo e não heroína da Marvel), Michel Jackson encontrou o seu limite no propofol e na benzodiazepina, Marilyn Monroe encontrou o seu limite nos barbitúricos, Ayrton Senna encontrou o seu limite na sétima volta do GP de San Marino, o Everest está cheio de corpos de heróis que tentaram superar seus próprios limites.


Os jovens cariocas de classe média alta, que agrediram uma empregada doméstica que estava no ponto de ônibus depois de um dia de trabalho, porque pensaram que ela fosse uma prostituta, assim como, os jovens brasilienses que queimaram o índio pataxó Galdino de Jesus dos Santos superaram todos os limites humanos possíveis.


A superação de limites está relacionada com a necessidade de reconhecimento, com a falsa sensação de poder que se experimenta, talvez exista nesta necessidade de superação, um complexo de superioridade secreto que encobre sentimentos de vulnerabilidade, fraqueza e inferioridade.


É preciso estar atento para não cair na armadilha da superação dos limites, o que o extrovertido busca lá fora, o introvertido encontra em seu mundo interno que costuma ser muito rico, o mundo real para ele é o das ideias e impressões, não pode viver a vida até que a tenha compreendido, seu pensamento é voltado para reflexões e análises, pensa primeiro para depois agir.


A sociedade ocidental deprecia o introvertido porque ele cons0me menos que o extrovertido. Os introvertidos não lotam os “shopping centers’”, eles desconfiam dos modismos e entre uma balada ou ficar em casa tomando um bom vinho e ouvindo uma boa música, eles certamente ficarão com a segunda opção, mas isso não quer dizer que eles não vão às compras e não vão às festas, eles apenas têm uma maneira mais comedida de ser.


O introvertido se deleita diante das fotos de Sebastião Salgado, ele entra dentro da imagem capturada, observa cada detalhe e sente na alma a grandeza daquilo que foi capturado em um clique, mas ele não quer ser Sebastião Salgado, que faz expedições para os lugares mais remotos e inóspitos do planeta em busca de uma imagem simbólica, que traz em si a história de um lugar.


Não há nada de errado em ser introvertido ou extrovertido, são maneiras diferentes de funcionamento, já nascemos com a bússola virada para dentro ou virada para fora. O mundo se equilibra com esses dois tipos de funcionamento, é por isso que eles existem como tal.


É preciso tomar cuidado com as frases prontas de autoajuda, é preciso refletir sobre elas antes de sair por aí repetindo-as feito um papagaio, as vezes procuramos lá fora aquilo que está dentro. Existe um conto judaico que li em Martin Buber que fala dessa procura lá fora daquilo que pode ser encontrado dentro.


O conto é sobre um rabino da Cracóvia, chamado Aisik, que sonhou por três vezes que havia um tesouro enterrado próximo a ponte que leva ao palácio real em Praga. Após o terceiro sonho ele seguiu viagem atrás do tesouro, porém a ponte era vigiada dia e noite e ele não se atreveu a cavar e ficou circulando pela área. Até que o capitão da guarda veio até o rabino perguntar se ele precisava de ajuda. O rabino contou-lhe o sonho que o havia trazido de tão longe. O capitão caiu na gargalhada e disse: “Se eu fosse acreditar em sonho, eu iria até a Cracóvia procurar um tesouro embaixo do fogão da casa de uma judeu chamado Aisik”. O rabino agradeceu e voltou para casa, escavou embaixo do fogão e encontrou o tesouro e com ele construiu uma casa de oração”.


As vezes andamos descalços por estradas de pedras à procura de um tesouro que sempre esteve lá em nossa casa, bem debaixo do nosso fogão, pense nisso antes de comprar frases prontas.

[i] ROBERT MOORE, DOUGLAS GILLETTE. Rei Guerreiro, Mago, Amante. Rio de Janeiro: Campos, 1993.

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