top of page

JOÃO DE FERRO: a psique masculina


“Este conto fala da importância da passagem do reino da mãe para o reino do pai; e por todas as outras histórias de iniciação ficamos sabendo como é essencial abandonar todas as expectativas de nossos pais, e encontrar um segundo pai, ou um ‘segundo Rei’. Saber como fazer um ninho numa árvore sem folhas, como voar para um lugar onde passar o inverno, como realizar a dança do acasalamento — todas essas informações estão armazenadas em reservatórios do cérebro instintivo do pássaro. Os seres humanos, porém, sentindo toda a flexibilidade de que poderiam precisar para enfrentar situações novas, resolveram armazenar esse conhecimento fora do sistema dos instintos: guardaram-no nas histórias. As histórias, portanto — contos de fadas, lendas, mitos, folclore — equivalem a um reservatório onde guardamos as novas maneiras de reagir, que podemos adotar quando as maneiras convencionais e habituais se desgastam (Robert Bly)”.


A simbologia da bola dourada


Muitos contos trazem a história de uma bola dourada que foi perdida por uma criança. A bola dourada lembra a totalidade da personalidade que tivemos um dia quando crianças, antes de nos dividirmos em macho e fêmea, bom e mal, certo e errado, emoção e razão. Representa o mundo encantado da infância, no qual os sonhos, as fantasias e a realidade se misturam, representa a inocência da infância. Perto dos oito anos vamos perdendo esta bola encantada e vamos passar o resto da vida a procura dela.


O garoto de nossa história quer a bola dourada de volta, se aproxima da jaula e pede a João de Ferro que a devolva, esta foi a primeira tentativa de recuperá-la, mas para isso teria que soltar João de Ferro, ou seja, pôr para fora sua agressividade. Mas o garoto aprendeu que não se deve ser agressivo, que Deus castiga, que ele irá para o inferno, que a mamãe ficará muito triste. A agressividade contida e represada ganha forças. Ela deveria ser expressa brincando com barro, sujando-se na lama, jogando futebol, brincando de cabo de guerra, subindo em árvores, fazendo guerra de mamonas, nadando em rios, mas hoje as crianças são “crianças de apartamento” com tapete branco e piso de porcelanato, passam horas em frente à televisão ou jogando vídeo game.


O menino pede a bola pela segunda vez e novamente não tem coragem de abrir a jaula. Na terceira vez, os pais saíram, e João de Ferro diz que a chave está em baixo do travesseiro de sua mãe. O travesseiro da mãe é o local onde ela deposita os seus sonhos, os sonhos de que seus filhos serão grandes homens, nenhuma mãe sonha que o filho seja um HOMEM NATURAL. Ela guarda a chave porque sua tarefa é domesticar esse HOMEM NATURAL que habita em cada menino.


O garoto quer muito a bola de volta e resolve pegar a chave e abrir a jaula mesmo sabendo que está correndo riscos. Ele abre a jaula e João de Ferro escapa e o menino não pode ficar mais no castelo, porque será punido quando seus pais retornarem, então ele vai embora para a floresta com o João de Ferro.


Ele poderia ficar no Castelo e mentir para seus pais que nada viu, dessa maneira ele afastaria de sua psique o HOMEM NATURAL, não entraria em contato com os aspectos primitivos da sua personalidade e seria por algum tempo, até por volta dos 40 anos, o filho que toda mãe sonhou ter. Porém, viveria uma vida sem sentindo, uma vida que escolheram para ele, e quando os 40 anos bate à porta, é o HOMEM NATURAL quem atende, já não é mais possível escondê-lo na floresta, isso explica, o fato de que muitos casamentos acabam por volta dessa idade e os homens decidem que querem ser felizes a qualquer preço.


A simbologia do Homem Natural


Quando o jovem decide entrar na floresta e encontra um poço de onde sai uma mão que puxa o seu cão, ele volta ao castelo e pede ajuda a três homens que começam a secar o poço, com ajuda de baldes. Ao secar o poço descobre o Homem Natural. O Homem Natural nada mais é que o homem primitivo que existe dentro de todos os homens, aquela parte animal que ainda não foi domesticada.


O Homem Natural é retirado do poço e levado para o pátio do castelo, mas ele continua preso em uma jaula. Levar o homem para o pátio, significa trazê-lo à tona, trazer para a civilização, significa olhar de frente para os aspectos primitivos da nossa personalidade.


Quando você não reconhece todos os aspectos de sua personalidade, fatalmente você se tornará refém desses aspectos. É preciso coragem e paciência para ir em busca do HOMEM NATURAL, é preciso drenar a água do poço com baldes. Retirar a água do poço com balde exige muita disciplina por parte de qualquer homem, muito mais do que se possa imaginar.


“Mas descer pela água para entrar em contato com o Homem Natural, lá no fundo, é uma outra coisa. O homem que ali se ergue é assustador, e parece ainda mais assustador agora, quando as grandes empresas tanto se empenham em produzir o homem higienizado, depilado, raso. [...] quando se aproxima do que chamarei de "homem profundo”, sente o risco. Receber bem o Homem cabeludo é assustador e arriscado, e exige um tipo diferente de coragem. O contato com João de Ferro exige a disposição de descer até a psique masculina e aceitar o que de sombrio existe nela, inclusive as trevas nutritivas”.


“Trevas nutritivas” indica que podemos retirar coisas boas da nossa personalidade que deixamos na sombra, nas trevas, sem a luz do sol. Todos nós colocamos coisas embaixo do tapete ou guardamos dentro de um baú: sentimentos que não temos maturidade para entrar em contato, sentimentos que nos convenceram que eram sentimentos ruins e que não deveriam ser expressos, frustrações que a vida foi depositando, desejos que pareciam ser impossíveis de serem realizados, porque temos dificuldade em acreditar em nossos potenciais, é o ‘Complexo de Jonas’, que nos faz duvidar de nossas potencialidades. Vamos acumulando esses sentimentos e deixamos escondido longe da luz do sol, mas está ao nosso lado como nossa sombra e não podemos nos separar de nossa sombra, mas podemos tirar algo bom e criativo de lá. Lembre-se que até no pântano há muita vida, a biodiversidade é infinita, flores nascem no pântano, o mundo nasceu do caos.


Somos seres complexos, somos bons e maus, masculino e feminino, yang e yin, quando olhamos para tudo isso e aceitamos que somos o médico e o monstro, deus e o diabo, anjos e demônios, humanos e animais, fica muito mais fácil lidar com essas forças. É preciso trazê-las para a consciência, “trazer o HOMEM NATURAL para o pátio”, dar visibilidade para essa força que habita em nós. Só assim podermos controlá-la, só assim saberemos quem somos e como reagimos, então, poderemos fazer nossas escolhas de forma consciente, sem cair as nossas próprias armadilhas.


Quando o menino parte para a floresta, ele se separa da mãe e do pai e tem que enfrentar todos os seus medos e vai descobrindo que João de Ferro não é um homem tão primitivo como parecia.


“O problema da família nuclear, hoje, não é tanto o fato de ser louca e estar cheia de exigências emocionais contraditórias (isso acontece também em comunas e escritórios de empresas na verdade, em qualquer grupo). O problema é que os velhos fora da família nuclear já não oferecem uma maneira eficiente para que o filho rompa seus elos com os pais, sem causar danos a si mesmo. As sociedades antigas acreditavam que o menino só se torna homem através do ritual e do esforço só através da 'intervenção ativa de homens mais velhos'.


Está se tornando claro para nós que a idade adulta não é atingida por si mesma; ela não acontece porque comemos isto ou aquilo. A intervenção ativa de homens mais velhos significa que estes recebem o homem mais novo no mundo masculino instintivo, mitologizado, antigo.


Uma das melhores histórias que ouvi sobre esse tipo de recepção é a que ocorre anualmente entre os Kikuyu, na África. Quando o rapaz tem idade suficiente para a iniciação, é afastado da mãe e levado para um lugar especial, organizado pelos homens a certa distância da aldeia. Ali jejua por três dias. Na terceira noite ele se senta num círculo em volta da fogueira, com os homens mais velhos. Está com fome, com sede, alerta e aterrorizado. Um dos velhos pega uma faca, abre uma veia em seu próprio braço e deixa um pouco do sangue escorrer para uma gamela. Todos os homens mais velhos do círculo abrem seu braço com a mesma faca, e a gamela circula, enquanto vão deixando cair nela o seu sangue. Quando é a vez do jovem, ele é convidado a alimentar-se com aquilo.


Nesse ritual, o rapaz aprende várias coisas. Aprende que o alimento não vem apenas da mãe, mas também dos homens. E aprende que a faca pode ser usada para muitas finalidades além da de ferir os outros. Poderá ter agora qualquer dúvida de que é bem recebido entre os outros homens?”


Na opinião do autor uma mulher pode gerar um filho homem, mas não pode iniciá-lo. Somente um homem pode iniciar um homem, assim como, somente uma mulher pode iniciar uma mulher.


Antes da revolução industrial, os filhos homens saiam para trabalhar com seus pais, aprendiam a profissão do pai, seja na agricultura, ou como ferreiro, mineiro, sapateiro, alfaiate, ou na construção de sinos, ou na construção de igrejas. Os meninos passavam grande parte do tempo com homens mais velhos e com eles aprendiam a ser homem.


Na modernidade os pais foram trabalhar em escritórios com ar condicionado, a quilômetros de casa e passaram a não conviver com seus filhos, quando chegam em casa cansados, eles já não têm mais ânimo para brincar com os filhos.


A educação dos meninos ficou por conta das mulheres e criou-se uma grande lacuna na educação desses meninos por conviverem cada vez menos com homens mais velhos. O pai representa a ordem, a lei, as regras, os limites, e a mãe, na maioria das vezes afrouxa essas regras.


Os meninos passaram a formar uma opinião sobre seus pais a partir daquilo que suas mães lhes falavam, eles deixaram de criar uma opinião a partir deles mesmos. E a opinião da mãe é apenas a opinião da mãe, é a partir daquilo que ela acredita, daquilo que ela vivenciou, a partir de suas emoções – é a verdade dela e não necessariamente a verdade do filho. Há um momento que o menino precisa separar-se da mãe para tornar-se homem, é disso que a história trata.


A partir da minha experiência como psicóloga, observo que os meninos perdem a bola dourada quando são colocados na escola, são obrigados a usarem uniformes e são colocados sentados por horas em carteiras um atrás do outro. O conhecimento não é construído de forma prazerosa, mas através da obrigatoriedade de decorar coisas que não versam sentidos para uma criança e através da premiação ou da punição, na verdade as escolas sempre estão vigiando e punindo.


A bola dourada escapa pela janela das salas de aula quando as crianças são obrigadas a decorar os afluentes da margem direita do Amazonas, toda a dinastia de faraós do antigo Egito, o relevo da América do Sul, as capitanias hereditárias, o Tratado de Tordesilhas, o valor de Pi, cosseno, tangente, hipotenusa e os catetos perfeitos sem que ninguém lhes mostre a utilidade prática de cada aprendizado. E as crianças que insistirem em procurar pela bola dourada perdida, são diagnosticadas com TDAH (Transtorno de Atenção e Hiperatividade).


Todos nós sem exceção somos vítimas do sistema, ninguém escapa. Porém, ao ter consciência dos fatos, podemos fazer nossas escolhas e não ficar no papel de vítima. Quando escolhemos o papel de vítima, deixamos de ser o protagonista de nossa própria história, deixamos que outros escrevam a nossa história e experimentaremos uma vida não vivida.


Tem uma coisa muito interessante no islamismo, que é a primeira lei do islã: LER. Eles entendem que se você ler muito, vai aprender bastante sobre você e o mundo, e, assim, poderá fazer boas escolhas sem ser enganado pelos outros ou por suas próprias armadilhas.


É importante ter bem claro que nos tornamos seres culturais, que a palavra falada ou escrita nos afastou da natureza, o que é uma grande perda para todos nós, porque a natureza tem muitas respostas para as nossas infinitas perguntas. Somos influenciamos pelos modismos, ninguém ensina os pais a criarem seus filhos da melhor maneira possível, e os próprios pais também sofrem influência dos modismos da cultura.


As mulheres estão fazendo o melhor que podem e aos homens foi ensinado que eles devem ser o provedor da família, e existe uma pressão para que o homem seja bem-sucedido, que ganhe muito dinheiro e que dê muito conforto a sua família. Para que isso aconteça, os homens se afastam de seus filhos. Melhoramos em conforto e tecnologia, mas perdermos em afetividade.


Voltemos a nossa história: o menino precisa pegar a chave debaixo do travesseiro da mãe, ele precisa romper o cordão umbilical que o liga a mãe, para deixar de ser um menino e entrar para o mundo adulto, se ele não pegar a chave e abrir a jaula, ele será um adulto infantil, um adulto imaturo que sempre vai depender da mãe.


Quando o menino abre a jaula, ele machuca o dedo. Esse machucado representa a dor de deixar a infância, a dor de sair do mundo da mãe para entrar no mundo dos adultos, representa a culpa que o menino sente por estar rompendo com a mãe e com a infância para se tornar um homem.


Todos nós não queremos sair do paraíso, queremos comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e mal e sem sermos expulsos do paraíso, mas não tem outro jeito de crescer, somos expulsos do paraíso sim e a vida toda sonhamos em voltar para o ventre materno onde tudo era paz. Vamos sempre carregar esta ferida, a ferida da infância perdida. E, quando o menino abriu a jaula e o Homem Natural saiu de dentro dela, ele deixou a infância para trás.


Ele mergulhou o dedo na água, depois foi a vez do cabelo cair na água e ficar dourado. A água representa a purificação, durante nove meses vivemos mergulhados no útero materno, então, viemos da água, nossas primeiras lembranças da vida iniciam-se na água, no líquido amniótico do útero materno. Nas mais diversas religiões a água é considerada sagrada, as pessoas são mergulhadas na água para o ritual de purificação do batismo.Entrar em contato com a água é entrar em contato com o divino, com o mistério da vida, com o sagrado. A vida não é só material, precisamos alimentar a alma e para tanto devemos fazer uma conexão com o divino, precisamos acreditar que existe algum mistério, que os deuses estão cuidando de nós.


“Talvez alguma grandeza, ou semelhança com Deus, seja útil para nos protegermos quando somos muito jovens.”


De alguma forma o menino da história passou pelo ritual do batismo, entrou em contato com uma dimensão divina, que tornou seu dedo e os cabelos dourados. Dourado é a cor do ouro, o ouro é o mais puro e nobre dos metais.


João de Ferro blefou quando disse ao menino que ele não havia passado no teste e teria que ir embora. Para continuar seu desenvolvimento, o menino tinha que ir para o mundo dos homens, primeiro ele passou pelo ritual do batismo, para compreender que além da dimensão material, existe uma dimensão espiritual, sagrada e misteriosa. Tanto é que ele passou no teste, que João de Ferro lhe deu o dom de vir à floresta pedir ajuda todas as vezes que ele estivesse em apuros.


Isso é sabedoria. Todas as vezes que um homem estiver em apuros, se ele for sensível o bastante para pedir ajuda para o Homem Natural que existe dentro dele é sinal de muita sabedoria. Ele entrará em contato com uma sabedoria milenar que existe dentro dele, ele entrará em contato com sua intuição, com o arquétipo do guerreiro, com o arquétipo do herói.


A intuição perdida em águas profundas é uma bússola que nos guia nas noites escuras, é nosso guia espiritual, é nosso daimon, é o gênio que habita em nós. De posse da nossa intuição e compreendendo nossa dimensão divina é como possuir armaduras reluzentes, cavalos velozes, exércitos potentes para afugentar o inimigo e ganharmos qualquer batalha.


O menino da história era filho de um rei, portanto um príncipe. Mesmo sabendo que era um príncipe aceitou trabalhos humildes em outras terras, que não eram terras de seu pai. Trabalhou na cozinha cuidando dos alimentos e depois como jardineiro cuidando da terra, que germina a semente, transformando-a em flor. Aprendeu a lição da humildade e que a vida possui ciclos que devem ser obedecidos. Mesmo tenho vencido as batalhas, conquistado as maças de ouro, não fez alarde, não postou no Facebook e, tão pouco no Instagram, eram vitórias pessoais que faziam parte de seu desenvolvimento como homem.


E, como em toda a história no final, o príncipe casa-se com a princesa. O casamento significa a união dos opostos, a união do feminino com o masculino. O feminino é o ser, representa o aspecto restritivo, e o masculino é o fazer, representa o aspecto expansivo. Para sermos seres inteiros precisamos dessas duas potências. A potência masculina é aquela que nos faz levantar da cama e sair para o trabalho, a potência feminina nos ajuda a sentirmos, a entrar em contato com a intuição, nos une ao Homem Natural, nos ajuda a mergulhar em águas profundas para encontrarmos a nós mesmos.


No desfecho final um encantamento fora quebrado: “Eu sou João de Ferro, que um feitiço transformou num Homem Natural. Quebraste o encantamento. A partir de agora, todos os tesouros que tenho são seus”.


Ao pegar a chave debaixo do travesseiro da mãe para abrir a jaula, deixou que o Homem Natural escapasse, foi levado por ele até a floresta, deixou para trás a infância e teve que enfrentar todos os seus medos longe da mãe e do castelo do pai. Passou pelo ritual do batismo para integrar o sagrado em sua personalidade, aprendeu a humildade trabalhando de ajudante na cozinha e como jardineiro. (Lembrando que é na cozinha que os grãos são transmutados pelo calor do fogo transformando-se em alimentos, e que o jardineiro é aquele que cuida da terra para as plantas germinarem e crescerem).


Ao pedir ajuda para o Homem Natural, entrou em contato com sua intuição, venceu as batalhas para salvar o rei, conquistou as maças de ouro e casou-se com a princesa, ou seja, incorporou o feminino e o masculino em sua personalidade.


Sendo assim, o encantamento foi quebrado, o Homem Natural pode viver ao lado do Homem Cultural e os dois fazerem jus ao tesouro que aí existe.

51 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page