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RELEITURA DO MITO DO PARAÍSO

Atualizado: 30 de mar. de 2023



As coisas eram.


Naquele tempo Cronos ainda não reinava, o tempo pertencia à Kairós, era o tempo do não tempo, o tempo oportuno, o tempo presente. Não havia nem o passado e tão pouco o futuro, tudo acontecia no agora. O dia se alternava com a noite, um trazia movimento, o outro a quietude.


A linguagem verbal não era tão sofisticada, as coisas não tinham nome, elas apenas eram o que eram. Adão não sabia que se chamava Adão e nem Eva sabia que se chamava Eva.


Eram partes integrantes da natureza.


Não sentiam medo porque não sabiam o que era medo. Estavam sempre em segurança, havia muita comida, muitas árvores frutíferas, embora nada fosse nomeado sabiam pela intuição o que poderiam ou não comer, na verdade poderiam comer tudo o que estivesse ao alcance, exceto o fruto proibido.


Não havia chuva ácida, agrotóxicos e transgênicos, o que simplificava muito a vida, era só colher e comer. Não tinham medo de serem devorados por um leão faminto, porque a cadeia alimentar estava garantida e nenhum leão ficaria faminto a ponto de comê-los.

Como a linguagem verbal era limitada o mundo chegava até eles pelo olfato, pelo paladar, pelo tato e através dos sons. O mundo era aquilo que viam, ouviam, tateavam, cheiravam e saboreavam.


Simples e intenso.


Adão passava horas admirando uma videira, admirava o formato das folhas, as nervuras, suas flores e seus frutos. Sentia profundamente o aroma das flores e saboreava demoradamente o sabor dos frutos. Não havia nenhum biólogo no Paraíso para cortar o barato de Adão e dizer que a videira pertencia ao grupo das Cormófitas.


A videira apenas era o que era.


Quando a noitinha se revezava com o dia, eles se recolhiam para dentro de uma caverna que não tinha área gourmet, Wi-Fi, Netflix, tela plana, micro-ondas, freezer e cama americana. Então, eles se aconchegavam em um cantinho e adormeciam juntinhos para se aquecerem um com o calor do outro. Mas ao esfregarem pele com pele alguma coisa estranha acontecia, Eva sentia uma comichão que não sabia identificar e Adão tinha polução noturna. Via seu membro ficar ereto e depois murchar, mas não sabia o que era desejo e nem Freud havia nascido para explicar sobre a libido, sobre a pulsão sexual e a satisfação do desejo.


O gozo no Paraíso era de outra ordem.


Até mesmo no Paraíso a felicidade não pertence a linha do infinito, as vezes para o mundo avançar é preciso uma quebra de paradigmas, uma ruptura naquilo que está estabelecido, viver eternamente no Paraiso é o mesmo que viver mergulhado nas águas da inconsciência. O papel da Serpente é provocar rupturas para trazer o conhecimento e ampliar a consciência adormecida dos homens. São processos que na maioria das vezes geram dor, é sabido que crescer dói, que abandonar a casa do pai requer coragem, portanto precisamos de uma pequena ajuda da Serpente.


Sendo assim, a Serpente aproveitou que Adão vivia no mundo da lua, levou Eva para um canto e a convenceu que eles deveriam comer do fruto proibido, deveriam se fartar do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Eva não teve muito trabalho para convencer Adão, já fazia algum tempo que ele vinha desejando aquilo.


E, mesmo assim, toda a maledicência que paira sobre as mulheres ocidentais teve seu início no Jardim do Éden quando Eva foi convencida pela Serpente a seduzir Adão a comer do fruto proibido. Deus ficou enfurecido e os expulsou do Paraíso. Adão teve que começar a trabalhar para garantir a comida, a propriedade e a troca anual de carro. Eva foi condenada a ter partos dolorosos e, se não bastasse, deveria ser governada pelo seu marido.


A consequência trágica desse mito que nos fala da saída do paraíso, do nascimento do ego vigio que estava mergulhado no inconsciente é que ele foi transformado em uma ferramenta de dominação patriarcal, na qual Eva foi colocada como traidora e sedutora, logo, todas as mulheres são como Eva – traidoras, sedutoras, não são dignas de confiança. O mais grave é que as próprias mulheres se deixaram convencer, e a priori não confiam umas nas outras, a distorção do mito foi eficiente para a desagregação das mulheres, não é possível extrair força daquilo que está fragmentado, daí nasceu um outro mito, o mito da fragilidade feminina. E a quem interessa a fragilidade feminina? Certamente ao patriarcado que mantém viva a relação dominador-dominado.


Ao comer a maçã Adão e Eva se diferenciaram dos animais, adquiriram consciência, souberam sobre a finitude da vida, passaram a vivenciar o conflito da escolha entre o bem e o mal e deram início à história da reprodução humana. O mito da saída do Paraíso não é sobre pecado e pecador, é um mito sobre o nascimento da consciência humana.


A boa notícia é que a cada mordida que Eva dá na maçã, ela vai adquirindo mais conhecimento de si e do mundo e a medida que esse conhecimento vai se ampliando, sua consciência também se amplia progressivamente, e ela passa a questionar as diferentes formas de ser e estar no mundo, e, naturalmente, esse conhecimento incomoda Adão, aquele que tem o falo, que cria leis que atende à suas necessidades pessoais, e se não atende, cria artifícios para boicotá-las e busca satisfazer o seu desejo sustentado na ideologia do individualismo porque é livre e autônomo.


Quando Eva compreender que todos os homens nascem do seu ventre, quando ela compreender a magnitude dessa condição biológica e o poder que tem em suas mãos, quando ela deixar de ser um mero receptáculo, ela poderá abandonar o seu próprio machismo cultural e criar esses meninos para serem reis, heróis, guerreiros, magos e amantes, e não príncipes covardes ou valentões exibicionistas.


Eva poderá andar nas ruas sem medo do perpetrador, terá o seu salário, os seus direitos, os seus desejos equivalentes aos dos homens que ela criou, o mundo não estará mais dividido em gênero uma vez que só teremos seres humanos, não haverá mais um usurpador no seu caminho e sim um companheiro de caminhada, para que isso aconteça precisaremos de muitas serpentes, muitas maçãs e da força que emana de todas as Evas.


A maledicência do mundo não mais recairá sobre Eva, ela não mais aceitará uma culpa que não tem, a sábia Serpente foi e será sua grande aliada, ambas serão reverenciadas como aquelas que trazem o conhecimento para o mundo presente e vindouro, o mito bíblico será compreendido de outra maneira, falará da necessidade do conhecimento que liberta o ser humano, da necessidade de abandonar o Paraíso, de sair da casa do pai, da necessidade de se apropriar do conhecimento contido na maçã e diferenciar o bem do mal.


Talvez eu não viva para ver, mas o futuro à Eva pertence.


Maria Angelina Marzochi

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