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O processo terapêutico e a construção literária


Para um autor construir uma boa narrativa, é primordial que ele estabeleça uma conexão entre o leitor e o protagonista da história que deseja contar. O protagonista é a personagem principal da trama; portanto, é necessário que o leitor tenha empatia por ele. A empatia do leitor é o sedimento necessário para sustentar a leitura até o final.

No processo terapêutico, a empatia do terapeuta é a amálgama necessária para criar-se um vínculo significativo entre terapeuta e paciente, para que ambos sustentem o processo até o final. A partir desse vínculo, a história do paciente pode se revelar na presença do terapeuta.

Na narrativa – geralmente uma obra de ficção – tanto a trama quanto o protagonista são importantes na história. Na terapia, o paciente e toda a trama -ou seja, a cadeia de eventos da sua história - são fundamentais para o processo terapêutico.

O autor precisa caracterizar seus personagens, definir quem é o protagonista da sua história, quais os riscos que ele estará disposto a correr, qual será o seu conflito principal, qual será o objeto de desejo consciente e inconsciente.

Para a Psicanálise, o objeto de desejo consciente é aquele que formulamos racionalmente, o que pensamos querer. Enquanto, o desejo inconsciente é moldado por experiências e emoções passadas que influenciam nossas escolhas sem que percebamos. Quando há conflito entre os dois, surgem padrões de comportamento aparentemente contraditórios. O processo terapêutico ajuda a trazer à superfície esses desejos inconscientes e permiti sua ressignificação.

Na trama o inconsciente emerge das camadas mais profundas do protagonista – assim como, na terapia, o paciente traz à tona não apenas suas queixas imediatas, mas as verdadeiras motivações ocultas em sua psique.  

Em O Rei Leão, Simba conscientemente deseja ser livre e evitar suas responsabilidades, mas inconscientemente carrega o peso da culpa pela morte de seu pai, o que impede sua plenitude. Em Orgulho e Preconceito, Elizabeth Bennet acredita que deseja evitar o orgulho e os homens arrogantes, mas inconscientemente sente atração por alguém que desafia suas percepções.

Ao buscar a terapia, o paciente assume, assim como o herói de uma narrativa, o papel de protagonista de sua própria história. No entanto, diferentemente de um personagem ficcional, ele não tem um roteiro predeterminado: seu caminho se revela no processo de autoconhecimento. No decorrer do processo, ele vai descobrindo que o seu desejo consciente é antagônico ao inconsciente. A contradição gera conflito – o desejo consciente era uma mentira que ele contava para si próprio.

Na narrativa, o flashback revela informações do passado que impactam o presente do personagem - expõe a origem do conflito do herói.  A exposição a memórias dolorosas em terapia desenterra feridas passadas que moldam o comportamento atual. Em ambos os casos, o passado não é mera recordação, mas uma chave para ressignificação.


"O que me deixa realmente triste é pensar no Allie. [...] Ele era o mais inteligente da família. Era também o mais bondoso – nunca se zangava com ninguém. Tinha um taco de beisebol com poemas escritos a lápis em todo o lado, para não se aborrecer quando estava no campo. [...] Quando ele morreu, eu quebrei todas as janelas da garagem com o punho. Só para fazer alguma coisa. Até tentei quebrar o carro, mas minha mão já estava toda fodida." (O Apanhador no Campo de Centeio).


O flashback de Allie em O Apanhador No Campo de Centeio (1951), de J.D. Salinger, não é só uma lembrança: é uma ferida reaberta sempre que Holden se sente sozinho. O flashback mostra que ele não superou a culpa de estar vivo enquanto Allie morreu. Na terapia, tal memória seria o núcleo da cura – mas na narrativa, é o núcleo da repetição. O paciente, diferentemente do personagem, pode reescrever seu final.

Na literatura, o narrador não confiável distorce a verdade, cria tensão e mistério, pois a verdade só se revela aos poucos, conforme o protagonista confronta suas próprias ilusões.  Encontra seu paralelo no paciente que, sem perceber, edita sua própria história através de mecanismos de defesa (negação, racionalização) para evitar dor psíquica (ex.: insistir que "está tudo bem" enquanto repete padrões destrutivos). O terapeuta, como um crítico literário, decifra as lacunas e contradições do discurso, buscando a narrativa oculta sob as defesas.

O ponto de virada narrativo (clímax) é o momento em que o protagonista tem uma revelação ou toma uma decisão irreversível e funciona como o insight terapêutico: ambos são momentos de ruptura que deslocam o eixo da história. Assim como o momento em que Dom Quixote percebe que Dulcineia não existe, o insight terapêutico muitas vezes surge quando o paciente esgota suas próprias mentiras. Na ficção, o herói enfrenta o vilão; na terapia, o paciente encara sua própria sombra. Em ambos, a verdade liberta – mas primeiro devasta.

Na literatura, a catarse ocorre quando o leitor ou espectador se conecta profundamente com a jornada do protagonista e experimenta um alívio emocional ao acompanhar sua resolução. Ao ler Romeu e Julieta, o leitor pode sentir uma intensa tristeza pelo desfecho trágico dos protagonistas. No entanto, essa tristeza não resulta em mudanças pessoais profundas, apenas no reconhecimento da dor alheia e, possivelmente, no refinamento da sensibilidade emocional. A catarse literária tem um efeito simbólico, pois a emoção que o leitor experimenta não está necessariamente ligada à sua própria história, mas sim à identificação com personagens e suas dores; que pode provocar no leitor, reflexões, estimular a empatia, mas não exige que o ele mude.

Na terapia a catarse não é apenas uma observação passiva da emoção, é uma vivência direta da dor reprimida. Na terapia, o paciente acessa memórias dolorosas e as revive em um ambiente seguro, permitindo que sentimentos antes bloqueados sejam finalmente expressos e reorganizados. É um ponto de ruptura, exige que o paciente enfrente sua dor de forma ativa, conduzindo-o a uma nova narrativa interna.

Na literatura, a epifania é a revelação final que dá sentido à jornada, e na terapia, a autoaceitação é o momento em que o paciente se reconcilia com sua história (ex.: entender que sua ansiedade era uma proteção, não um defeito).

A epifania do personagem não é um final, mas um começo – assim como na terapia, onde a autoaceitação não apaga o passado, mas permite reescrevê-lo com novos significados. Em ambos os casos, a luz no fim do túnel ilumina o caminho já percorrido.

Na ficção, chegamos a um final irônico quando o protagonista alcança o objeto de desejo inconsciente, mas não alcança o objeto de desejo consciente. Assim como no final de O Alienista, onde Bacamarte alcança a “lucidez” ao reconhecer-se louco, o paciente em terapia descobre que sua cura não estava no que ele planejava, mas no que ele temia encarar.

Na terapia, o final irônico vem acompanhado da possibilidade de transcender ao ordinário e fazer uma integração ao mistério da existência. A vida ganha novos significados, permitindo abertura para o outro e para si, promovendo transformações e cura emocional.

Uma história sem risco não envolve o leitor; uma vida sem riscos não vale a pena ser vivida.

 
 
 

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