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Foto do escritorMaria Angelina Marzochi

O PERFUME: história de um assassino sob a ótica da teoria psicanalítica winnicottiana.

Atualizado: 3 de ago. de 2018



Contextualização sob a ótica da teoria psicoanalítica winnicottiana.
O Perfume: história de um assassino

Pretende-se aqui analisar o livro “O Perfume: história de um assassino”, de Patrick Süskind (1985), sob a ótica da teoria psicanalítica winnicottiana.


Donald W. Winnicott (1896-1971) pediatra e psicanalista inglês, dedicou-se à construção da teoria do desenvolvimento afetivo e pessoal a partir da dependência absoluta que o bebê tem em relação ao ambiente, passando à independência relativa rumo a independência até o final da vida - “o amadurecimento começa em algum momento após a concepção e, quando há saúde, não cessa até a morte” (DIAS, E.O., 2008).


Trata-se de uma teoria da saúde que descreve as diferentes fases e aquisições do desenvolvimento cognitivo, da moral, da aprendizagem e da socialização desde o início da vida, visando o amadurecimento do ser num intervalo entre dois estados de não-estar-vivo, (segundo Winnicott,1988, p.154, “a vida de uma pessoa consiste num intervalo entre dois estados de não-estar-vivo”).


Winnicott acreditava que a vida foi feita para dar certo, se não houver falha no ambiente, teremos sujeitos integrados e saudáveis, que serão protagonistas de suas próprias vidas, desenvolvendo a confiabilidade no mundo e o sentimento que a vida é sua e é real, uma vez que nascemos com uma tendência inata à integração e com potencial para a vida imaginativa, contudo “trata-se de uma tendência e não de uma determinação (DIAS, E.O.,2008, p. 33)”, e para que se realize precisará contar com o apoio do ambiente.


Para Winnicott na maioria dos casos a psicose é uma doença ambiental e não genética, originando-se no começo da vida em um ambiente não favorável.

Em largos traços, pode-se dizer que, segundo Winnicott, as psicoses são distúrbios relacionados ao fracasso ambiental na sua missão de facilitar as conquistas dos estágios iniciais – que começam em algum momento da vida intrauterina e vão até o estágio do EU SOU que ocorre, em geral, por volta de um ano ou um ano e meio. Se o ambiente falha repetidas vezes – ao modo de um padrão estabelecido – em se adaptar às necessidades do bebê durante a etapa de dependência absoluta, e mesmo relativa, ocorrem traumas e o processo de amadurecimento pessoal é interrompido, nesse momento primitivo em que estão sendo constituídos os alicerces da personalidade. Isso dá origem a um distúrbio psicótico (DIAS, E.O.,2008, p.35-36).


Seu trabalho se difere metodologicamente em relação a Freud e a outros autores, uma vez que compreendia o bebê e sua mãe como uma unidade psíquica, não os via como dois seres puramente distintos e sim fusionados. Só é possível descrever um bebê com sua mãe, sendo que na fase inicial da vida o ambiente é a mãe e gradualmente vai se transformando em algo externo e separado do bebê.


Com base nesta linha de pensamento teórica de Winnicott, vamos tentar contextualizar a história de Jean-Baptiste Grenouille, nascido em 17 de julho de 1738, mais especificamente em uma feira de peixes que ocorria em uma praça onde outrora foi o “Cimetière des Innocents”, em uma Paris dominada pelo fedor de gases da putrefação que cheiravam a uma mistura de melões podres e chifre queimado.


Em uma teoria, na qual mãe e bebê estão fusionados e que ele depende dessa mãe-ambiente para desenvolver-se de maneira saudável, precisamos então, descrever a mãe de Jean-Baptiste. Era uma jovem com pouco mais de vinte anos, ainda conservava um pouco de beleza, tinha quase todos os dentes na boca e um resto de cabelos. Não tinha nenhuma doença grave para a época, tinha gota, sífilis e uma leve tísica, esperava viver mais cinco ou dez anos, casar-se e ter filhos de verdade, tornando-se uma honrada esposa de algum consorte disponível.


Já tivera outros quatros filhos, lá mesmo na peixaria, que nasciam mortos ou semimortos, isso pouco importava, pois se misturavam com as vísceras dos peixes acumuladas no chão, e à noite eram jogados em carretas e levado para o cemitério ou para abaixo do rio.


Não pretendia que fosse diferente com Jean-Baptiste, queria livrar-se logo da dor do parto e continuar seu trabalho de descamar peixes. Acocorou-se embaixo da mesa de limpar peixe, e assim que o infeliz nasceu cortou o cordão umbilical com a própria faca de trabalho, caiu desmaiada indo parar no meio da rua onde ficou estirada com a faca na mão.


Como toda a criança que ao nascer chora, Jean-Baptiste chorou, seu choro lhe garantiu a vida, mas condenou à guilhotina a sua mãe.


Nesse ambiente hostil se deu o nascimento de nosso personagem, que nasce entre as vísceras dos peixes, filho de uma mulher que não tinha consciência de si e nem do outro, e cujo nascimento interrompe a vida dessa mulher condenada à morte pelos infanticídios confessos.


Jean-Baptiste passou por muitas amas e nunca por elas foi amado, cumpriam mecanicamente o seu trabalho de amamentá-lo em troca de algum dinheiro.

Para Winnicott (2000, p.399) o ambiente não suficientemente bom, distorce o desenvolvimento do bebê, enquanto o ambiente suficientemente bom, viabiliza que a cada etapa da vida, o bebê alcance as satisfações, as ansiedades e os conflitos inatos e pertinentes ao ser humano.


Na fase da dependência absoluta, o bebê precisa de uma mãe que esteja identificada com ele e que seja capaz de atendê-lo prontamente em suas necessidades, para que ele possa construir a identificação primária, a mãe e o bebê estão amalgamados. Esta fase, Winnicott chamou de preocupação materna primária, o bebê e a mãe são uma coisa só.


Quando o ambiente for suficientemente bom, onde há preocupação materna primária, comunicação silenciosa (com os fracassos maternos reparados, onde há mutualidade da experiência, função especular materna, holding, handling e apresentação objetal (apresentação do seio materno que o bebê cria na hora que ele quer), o bebê estará se desenvolvendo de maneira saudável para a integração, a personalização e a realização ( compreendida a partir da dependência absoluta a dependência relativa).


Sem sombra de dúvida as experiências pulsionais oferecem uma valiosa contribuição ao processo de integração, mas o ambiente suficientemente-bom também está presente o tempo todo através do holding, adaptando-se suficientemente bem às necessidades que vão se modificando. É apropriado a esse estágio que alguém atue apenas através do amor, do amor que carrega consigo a capacidade de identificação do bebê, além de um sentimento de que a adaptação às necessidades é que vale a pena. Podemos dizer que a mãe é devotada ao seu bebê, temporária, mas verdadeiramente... (Group Influences and the Maladjusted Child, l955, p. 148 apud Abram, J. 1966, p.136).


Jean-Baptiste sofreu maus tratos, passou por privações, foi tratado como se fosse um animal, não conheceu o aconchego de um colo carinhoso, não era visto, nunca teve o olhar confirmatório de um cuidador, e assim desenvolveu a capacidade de adaptar-se ao ambiente por mais ameaçador que fosse, não era o ambiente que se adaptava às suas necessidades e sim o contrário.


Cresceu pouco, era quase que invisível e inodoro de tão insignificante que se tornou, não atraia a atenção de ninguém. Tornou-se um grande observador do ambiente, seus atos eram premeditados, aprendeu a agir conforme aquilo que era dele esperado. De outra maneira não teria conseguido sobreviver e chegar a vida adulta em um mundo tão inóspito, frio e cinzento.


Na fase da dependência absoluta, é preciso haver uma regularidade entre as mamadas, uma constância no manejo de como o bebê é acolhido a cada choro (handling), na forma de aconchegá-lo ao colo (holding), o cuidador deve ser sempre a mesma pessoa, de preferência que o cuidador seja a própria mãe, embora isso nem sempre é possível.

A partir da previsibilidade do ambiente o bebê vai construindo um registro de continuidade de ser, que é mantido respeitado e não invadido, vai acumulando experiências e vivências e vai desenvolvendo-se gradativamente.


Ao oferecer o seio quando o bebê chora de fome, a mãe sustenta a ilusão da criança de que é ela quem cria o seio na hora que quer, esse sentimento de onipotência vai se transformando em confiança na vida e nos outros. A criança satisfeita vai “sendo” e de tanto ir “sendo” ela cria um self.


Se o ambiente falhar e não possibilitar a “continuidade do ser”, a criança perde a espontaneidade e passa a reagir ao meio, de forma prematura ela aprende a observar o ambiente, quebra-se a continuidade do “ser” e de tanto “não ser” ela cria um “falso self”. Geralmente resulta em adultos que possuem mentes brilhantes, mas desencorpados, o mundo é elaborado e vivenciado no plano mental, o corpo não é convidado a participar da vida.


Tal como Jean-Baptiste que vivia encapsulado em si mesmo, à espera de melhores tempos. Ao mundo não dava senão suas fezes; nenhum sorriso, nenhum grito, nenhum brilho nos olhos, nem se quer um cheiro próprio. Suportava sem manifestação de dor, as punições com vara desferidas por Madame Gaillard. Prisão domiciliar, privação de comida, trabalho punitivo, nada conseguia alterar o seu comportamento... inatingível, incorpóreo como um espírito.


Assim como o cego que desenvolve sua capacidade tátil, aquele ser inodoro desenvolveu uma capacidade olfativa tão peculiar que fez de Jean-Baptiste um dos maiores perfumistas que o mundo tinha conhecimento. É interessante pontuar que só os animais têm a capacidade olfativa desenvolvida, a natureza vai adaptando-se em busca da sobrevivência. Nosso personagem não conheceu o amor, não foi possível adaptar-se ao mundo pelo afeto e sim pelo odor que esse exalava, e como um elefante africano, conseguia de longe, distinguir moléculas de odor com diferentes estruturas extremante sutis.


Aprendeu o nome das coisas, não pelo alfabeto, mas pelo odor que cada coisa encerrava em si. Sabia distinguir os objetos, as pessoas, as plantas, os animais, enfim, todas as coisas do mundo sem a presença da luz, no mais opaco e profundo escuro sabia defini-las, dessa forma, seu repertório de palavras foi ganhando corpo. Porém o conjunto de palavras que compõe o léxico da moral, da ética, e dos mais sublimes e variados sentimentos não puderam ser por ele absorvido por serem subjetivos demais.


Anos mais tarde descobriu que o amor tinha um cheiro peculiar e estonteante, essa maravilhosa e incomparável fragrância era exalada pelas jovens na mais tenra adolescência, ainda virgens, como flores prontas para desabrochar na primavera.


Por experiência com animais, aprendeu que só era possível arrebatar a alma aromática de um ser vivo, depois de tirar-lhe a vida, para que a essência aromática não sofresse quaisquer modificações provocadas pelo medo ou pelo instinto de sobrevivência.


Não sabia o significado nem tão pouco o valor de uma vida, as pessoas os animais e os objetos eram equivalentes em sua escala de valores. Seu único objetivo era conseguir extrair a fragrância estonteante exalada pelas jovens virgens, e através do processo de enfleurage a frio, preparar aquele que seria o melhor perfume que o mundo já tivera conhecimento.


O que ambicionava era a fragrância de certas pessoas: daquelas, extremamente raras, que inspiram amor. Essas eram suas vítimas. E, assim, tirou a vida de vinte cinco jovens para chegar na poção perfeita que havia idealizado.


No dia que deveria ocorrer sua execução pela condenação dos assassinatos, impregnou-se do perfume, no qual havia trabalhado por dois anos, o cheiro causou um efeito de comoção, prazer e excitação em todas as pessoas ao seu redor. Sua execução acabou redundado em um grande bacanal e Jean-Baptiste que sempre sonhou em ser amado, assim que conseguiu realizar o seu desejo sentiu nojo de todos os seres humanos, nem sequer o menor sentimento de satisfação. O que ele sempre havia desejado, ou seja, que as outras pessoas o amassem, tornava-se no instante do seu êxito, insuportável, pois ele mesmo não as amava, mas as odiava.


Na formulação de sua teoria, Winnicott não considerou o superego de Freud, porque acreditava na ética do cuidado que era internalizado pelo bebê. Acreditava que o bebê no início da vida era um não-ser, e mesmo assim, ele poderia internalizar a ética do cuidado com o qual foi manejado e essa ética seria internalizada através de sensações na fase não verbal, não representacional e não simbólica.


Ele, Jean-Baptiste Grenouille – nascido inodoro no lugar mais fedorento do mundo, achado no lixo, na merda e podridão, criado sem amor, vivendo sem calor de alma humana, vivendo tão somente da teimosia e da força do nojo, pequeno, corcunda, coxo, feio, rejeitado, um monstrengo tanto por dentro como por foro -, conseguiu tornar-se amado pelo mundo...A chama divina, que às outras pessoas é dada no berço e só a ele não fora dado, ele a conseguira mediante infinito refinamento (Süskind, 1985, p.249).


Nosso personagem não teve acesso a ética do cuidado, a essência do amor que ele procurava, a qual transbordava nas jovens virgens adolescentes, aquelas que floresceriam como mulheres e gerariam outros seres em seus ventres, essa essência exalada, vinha de dentro, vinha do cerne do ser. Foi macerada no cuidado materno, em um trabalho diuturnamente de entrega, de amor, com constante previsibilidade para gerar a essence absolue dentro do ser.


A mãe suficientemente boa é como Atená, que quando Zeus encarregou Prometeu e Epimeteu de criar as coisas na terra, Prometeu criou o homem a partir do barro e Atená os presenteou com uma borboleta, que representa a psique do homem, a alma do homem. Sem a borboleta de Atená teríamos somente homens de barro.


Jean-Baptista procurava fora aquilo que nunca encontrou dentro de si, porque nunca lá foi depositado alguma coisa. Quando pensou ter encontrado sentiu-se tão calmo equilibrado e tão uno consigo mesmo, mas aquilo que ele tanto desejou, tornou-se insuportável no instante do seu êxito, o amor recebido reverberava em ódio pelas pessoas, não havia amor lá dentro para retribuir o recebido.


Referências

ABRAM, J. A linguagem de Winnicott. Tijuca: Revinter, 1996, p.136


DIAS, Elsa Oliveira. A teoria winnicottiana do amadurecimento como guia da prática clínica. Nat. hum., São Paulo, v. 10, n. 1, p. 29-46, jun. 2008. Disponível em

<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302008000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 15 jun. 2018.


SÜSKIND, P. O Perfume: história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985.


WINNICOTT, D.W. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1988.


WINNICOTT, D.W. A preocupação materna primária em: Da Pediatria à Psicanálise – Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

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